Digo (digo mesmo)



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sábado, março 12, 2005

Henrique e Dalila vão ao teatro


(Dalila é "=", Henrique é "-")



=Tu bate recordes, Henrique.

[Eles estão chegando em casa, ele aliviado pelo fim do pesadelo e ela irritada como se toda a culpa fosse dele. Não trocaram nenhuma palavra no carro, na vinda, mas assim que entraram ela começa.]

=Tu-ba-te-re-cor-des-pon-to. Ninguém é TÃO ignorante em todo esse pobre astro que é a Terra, pobrezinha, que não merecia te agüentar em sua orla!

[Ele segura o riso pela parte da separação de sílabas, por ela achar que a Terra é um Astro, por ela achar que "orla" quer dizer "superfície" e por, ainda por cima, estar dizendo que ELE é que é ignorante. Segura o riso pois sabe que rindo piora. Ela continua:]

=Além de não gostar da peça, que era uma obra de arte, fez um papelão na frente das minhas tias. Que vergonha. Que-ver-go-nha-quieu-sen-ti!

[Eles estão voltando do teatro, pra onde foram com três tias de Dalila no banco de trás do carro de Henrique. As três reclamavam em coro de qualquer imperfeição no modo de dirigir dele. Chegando lá, na galeria lateral (poleiro do poleiro) do Theatro São Pedro, ele não gostou da peça mesmo, como já suspeitava assim que soube do título. "Johnny e o Link da Internet". A resenha explicava: "o João e o Pé de Feijão do séc XXI". O arrepio na espinha que sentiu quando Dalila o convidou pra assistir a essa peça mal tinha previsto as tias e o frio que faria no dia, só tinha previsto a ruindade da peça mesmo. Dalila foi com as costas de fora pra deixar Henrique com ciúmes dos outros homens - ela adora fazer isso, sabe que o ciúme move montanhas - mas, na saída, dois carros estacionaram atrás do de Henrique, trancando a saída, fazendo-os esperar no frio brutal que fez aquele dia.]

[Henrique estava gripado e, por isso, não podia emprestar o seu casaco para a pobre Dalila, que tremia. Mas se não estivesse gripado ele talvez desse alguma desculpa pra não emprestar e pensaria "bem feito, quem mandou querer fazer ciúmes". As tias dela ficaram, durante os 40 min. da espera, reclamando porque ele não dava o casaco pra ela, que no tempo delas era diferente, que onde já se viu, que ele ainda não tinha aprendido isso, sem contar as coisas que diziam no ouvido dela, na frente dele. E ela, ao invés de explicar pras tias sobre a gripe dele, escondia muito mal seu riso de satisfação por ter um time "a seu favor", pois tinha se irritado com Henrique por ele não ter gostado da peça.]

[Já em casa, ela fala em um tom de voz altíssimo:]

=Pra que ficar reclamando da peça o tempo inteiro? Pra quê? Pra-quê?

-Dalila, não berra. Tu não tem razão e fica berrando. Pára de berrar.

=Olhaí, já começou a--

-Dalila, eu sabia que tu ia fazer isso. Ia chegar em casa e ficar reclamando gritando.

=Mentira.

-Quer ver?

=Vai provar que já sabia?

-Vou. Olha o que eu escrevi enquanto a gente esperava os carros saírem:

[Henrique recita o poema que escreveu:]

Dalila não me enche o saco
Eu até falei que tava frio
Culpa tua não ir de casaco
Se tens um motivo, tenho mil...

...pra achar que não valeu a pena
ir nesse teatro que tu gosta -
pra falar de uma forma amena.
Pra ser franco, achei uma bosta.

Tu sabe que tô gripado mas não disse
pras tuas tias quando fizeram o fiasco
me torrando o saco - que chatice! -
pra eu te emprestar o casaco

A peça claramente era uma merda
E quem gostou dela tem mau gosto
E pára de reinar. Não me testa,
Pois assim me obrigas a ser grosso!


[Resposta imediata:]

=GREVE DE SEXO!!

--//--



[Quando voltam a se falar, um BOM tempo depois, vem uma discussão mais séria. Greve de sexo na verdade não existe, é um "tempo" mesmo, porque juntos eles não agüentam ficar sem e, então, pra greve dar certo, eles não se vêem, e ficam em casa um mais louco de vontade do que o outro, até onde vai o limite do orgulho. O máximo que já deu certo uma vez sem ter que ficar sem se ver foi uma greve de depilação que ela fez, que teve retaliação: greve de fazer a barba. Quando se deram conta da situação ridícula, voltaram ao normal. Agora eles discutiam em tom calmo e sério, os dois pensando se ainda valia a pena o namoro:]

-Nosso amor é como o Napster: era perfeito no início e nós nunca pensamos que ia desaparecer.

=Nosso amor é como o Jô Soares: já foi maravilhoso mas tá demorando pra se dar conta de que não dá mais.

-De repente não dá mais mesmo...

[O fato de estarem concordando com alguma coisa faz o clima melhorar.]

-De repente não somos mais Henrique e Dalila, HD, Hard Disk, Hawaiian Dreams, Hugo Deleon, Hélio Dosanjois, Helicóptero Dosbombeiros, Hospital Deatendimentodeemergência...

=Hahahaha

[Ele ainda sabia fazer ela rir. Ficam um pouco em silêncio, mas agora sorrindo. Os dois lembram muito bem que estão vindo da greve dela. Casualmente ela está usando um decote chamativo, e ela percebe ele dando uma espiada. Ele tira os olhos na hora, mas sorri sabendo que ela percebeu.]

=Rico,...

[Henrique olha fixo nos olhos de Dalila uns segundos...]

--//--

[Esse ritual leva a uma situação inevitável que só termina meia hora depois, com os dois ofegantes, deitados lado a lado, suados, olhando pro teto com um sorriso no rosto. Óbvio que eles iam acabar voltando.]