Digo (digo mesmo)



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quarta-feira, março 09, 2005

Henrique e Dalila encontram Laura


("-" é Henrique e "=" é Dalila)



-O século retrasado terminou bem.

[Henrique e Dalila iam de carro ao shopping encontrar uma amiga de infância dela.]

=Quê?

-É que Dom Casmurro é de 1900. Não tem livro mais genial.

=Então o século PASSADO é que COMEÇOU bem.

-Não. 1900 é o último ano do século dezenove.

=Claro que não! Tanto que de 1999 pra 2000 foi aquela loucura! Ai, o melhor reveillon da minha vida. Entrando no século vinte e um, que loucura! Como eu fiz promessa, como eu fiz simpatia. A virada foi bem na sétima onda, a rolha estourou bem na hora e ao mesmo tempo eu engoli as sete lentilhas, que passaram sete dias embaixo de sete travesseiros brancos e amarelos.

-Putz! Como tu conseguiu fazer isso?

=Treino. Depois nunca mais também, nos outros reveillons agora só ponho a calcinha da cor certa e era isso. Mas aquele ano valeu a pena. Como foi especial! Loucura!

-Ma-- [Henrique chegou a formular na cabeça a frase dizendo que, em primeiro lugar, 2000 ainda era séc. XX e, em segundo, aquela palhaçada toda era ridícula, mas achou melhor guardar pra ele. Deixa ela ser feliz, né?]

-Legal.

=Mas daonde tu tirou esse papo de século retrasado?!?

-Não sei, me veio na cabeça.

=Qu-- [Dalila chegou a formular na cabeça a frase dizendo que aquilo era uma grande besteira sem graça e sem proveito nenhum, que ele podia guardar pra ele essas asneiras e que esses dias ela até passou vergonha quando ele veio com uma dessas na frente de não-sei-quem. Mas achou melhor deixar assim mesmo. Deixa ele ser feliz.]

=Hm.

[Chegam no shopping. Ela diz pra ele ir indo encontrar a Laura na praça de alimentação enquanto ela vai comprar uma coisa na farmácia. Ela ainda tem vergonha de dizer ao próprio namorado que está indo comprar as pílulas.]

-Tu deve ser a Laura!

+Isso! Como sabia?

("+" é o travessão da Laura)

-A Dalila me disse: "A Laura adora poesia e fala francês".

+Mas e como percebeu?

-Percebi pelo jeito, pela expressão.

[Laura ficou vermelha, adorou saber que tem uma imagem cult, e adorou a sensibilidade do Henrique. Na verdade só tinha três mulheres sozinhas esperando na praça de alimentação, e ainda por cima ela foi a terceira que ele abordou. Esse Henrique não vale nada, mesmo.]

+E a Dalila?

-Tá ótima! Vai ver se começa um curso de--

+CADÊ a Dalila? [Corrige, rindo.]

-Já vem. [Se diverte junto.]

[Eles conversam sobre vários assuntos: o relógio novo dela, que leva a presentes, que leva a Natal, que leva a lembranças de infância, que leva à tia da Laura que uma vez se assustou muito com uma galinha que surgiu do meio de umas bananeiras no sítio dela, que leva a bananas à milanesa ("+Como alguém pode comer isso?". Henrique adora mas concorda com ela), que leva a Carmen Miranda, que leva a brasileiras de sucesso (apesar de Carmen Miranda ser portuguesa), que leva a brasileiros de sucesso, que leva a Machado de Assis, que leva a Dom Casmurro, que leva a:)

-E tu vê: Dom Casmurro é de 1900.

+É?? Mas o século retrasado terminou bem mesmo!

[Nisso, chega Dalila.]

=Amigaaaa!

+Oi, guriiiiaa! Nossa, como tu tá bem!!

[Etc., etc., etc. Cumprimentos de gurias. Pior: cumprimentos de gurias que não se vêem há anos. Elas começam a falar de milhares de assuntos. Henrique não faz a menor idéia do que se trata nenhum deles. Elas lembram de piadas internas, conhecidos em comum, e se dão conta de que as duas acompanharam com a mesma persistência a vida pessoal das celebridades durante esses anos, dando assunto infinito pras duas. "Haja saco", pensa Henrique. Ele mata o tédio comendo mas, depois de não agüentar mais comer, elas ainda tem assunto. "Haja saco", pensa Henrique, repetidas vezes. Todo aquele entusiasmo de achar que encontrar a Laura com a Dalila seria legal passou.]

+E tu, Henrique, faz o quê?

-Haja saco. (Ih! Será que eu disse isso ou só pensei?)

+Quê?!?